
Quem chega ao Lar Ananda Marga é recebido com grandes sorrisos em pequenos rostos. As crianças de até 5 anos que moram na favela de Jardim Peri Alto, Zona Norte de São Paulo, passam o dia na creche, de origem indiana, enquanto as mães trabalham fora. Entre as atividades, as maiorzinhas praticam ioga.
Em uma sala cheia de cores e desenhos das próprias crianças, George, 4 anos, ocupa o centro da roda de meninos e meninas que escutam a professora Andréa Freitas contar a história de uma formiguinha que desobedeceu os pais e saiu sozinha para conhecer a floresta, mas acabou prendendo seu pezinho na neve. Enquanto a esperta e agitada formiguinha, no centro da roda, pede aos animais, à árvore e ao Sol para que a soltem da neve, os garotos representam, por meio de asanas (posturas de ioga), os outros personagens da fábula.
Esse é o enredo de uma aula de ioga para crianças: curta e lúdica. A coordenadora do Lar Ananda Marga, Didi Jaya, uma filipina que deixou tudo para trás para disseminar, no Brasil, a educação neo-humanista – que inclui o ensino de ioga no currículo –, diz que 85% de nossa personalidade é formada na infância. “Se preparamos essas crianças para serem melhores cidadãos, a transformação do mundo será muito grande.”
Acalmando os ânimos
Há quase um ano, quando começaram a ter suas primeiras aulas, George e o irmão gêmeo, Gustavo, eram agressivos. Eles batiam nas outras crianças da creche e jogavam os brinquedos no chão, com raiva. George andava na ponta dos pés, revelando sua precoce insegurança, e Gustavo quase não falava.
Mal dá para acreditar que são os mesmos meninos que olham curiosos para a repórter que assiste à aula de ioga e aproveitam os dinâmicos movimentos das mãos na formação dos mudras – que também estimulam a agilidade dos pensamentos. Além de se darem bem com os colegas e não agredirem mais as outras crianças, George e Gustavo estão mais unidos e têm provocado grandes mudanças em casa. Solimar Araújo, mãe dos gêmeos, conta que, nos fins de semana, os dois se sentam juntos e começam a fazer as posturas que aprenderam na creche. “Eu pergunto para eles o que estão fazendo e eles respondem: ‘Nós estamos relaxando, mamãe’. É a terapia deles.” A mãe diz que a qualidade do sono dos meninos também melhorou. “Eles se debatiam muito para dormir. Agora, se deitam e dizem que não pode haver barulho e a cabecinha só vai pensar coisas boas. Eles fecham os olhinhos e brincam que o braço está descansando, que a perninha também está descansando e até o dedinho do pé está dormindo.” Didi Jaya vê nas aulas de ioga para meninos carentes um trabalho preventivo, que vai fortalecê-los contra alguns traumas e incentivá-los a ter uma atitude diferente diante da vida. “A ioga ajuda essas crianças a não crescerem com raiva do mundo.”
Jefferson Mesquita, 12 anos, pratica ioga há dois anos no núcleo socioeducativo do Lar Escola Recanto Cristão, na Zona Sul de São Paulo, que oferece atividades complementares a crianças carentes no período em que não estão na escola. Na aula da professora Amarílis Gonçalves, o equilíbrio é uma das questões mais trabalhadas e Jefferson se dá bem com o desafio de ficar em posturas como a da águia (garudasana). “Conseguir encontrar seu ponto de equilíbrio é a base para uma vida adulta saudável. Quando você equilibra o corpo, também pode equilibrar a mente”, observa Amarílis.
Pelo visto, a prática da ioga tem ajudado nesse caminho. “Eu estou mais tranquilo para fazer as tarefas em casa e na escola. Antes, eu batia a porta de meu quarto com o pé. Agora obedeço minha mãe e faço minha lição.” Antes de correr para a casa dos amigos para brincar, ele incorporou à sua rotina hábitos como pegar a irmã na escola, fazer o almoço, levar o pão para casa e lavar a louça.
Na casa do garoto, a prática da ioga se tornou um momento para estar em família. Empolgado com o fato de a mãe fazer ginástica no trabalho, ele troca algumas técnicas com ela e, sempre que Ana Paula está cansada, recebe do filho uma dica de postura para aliviar a tensão e o nervosismo. Quando a irmã de Jefferson, Júlia, iniciou as aulas de ioga no mesmo núcleo socioeducativo, surpreendeu a professora ao dominar boa parte das asanas, que o irmão já havia lhe ensinado
Jefferson também faz uso das técnicas de pranayama (controle da respiração) sempre que precisa se concentrar para uma prova. Outro ensinamento que fica das aulas de ioga é aprender a olhar para si mesmo sem julgamentos e sem se preocupar com o olhar do outro. Lição que faz toda a diferença para esses meninos, que estão deixando a infância e entrando na complicada fase da adolescência, em que, normalmente, a opinião do grupo interfere sobre a autoestima.
Respeitando diferenças
As crianças portadoras de alta habilidade, mais conhecidas como superdotadas, também têm suas dificuldades em lidar com as diferenças. Com capacidades bem superiores à média dos outros de sua idade, elas possuem questões em mente, desde muito cedo, que envolvem, inclusive, o significado da própria existência. Elas podem se indignar facilmente com um colega que demore um pouco mais para aprender o conteúdo de uma disciplina ou com o fato de alguém estar sujando o planeta na sua frente. Muitas dessas crianças sofrem preconceito dos colegas e se sentem pouco compreendidas pela família, pela escola e pelos amigos.
A iogaterapeuta Gabriela Toscanini diz que é importante trabalhar o emocional delas e levar em consideração suas questões existenciais. Enquanto as escolas ainda não estão preparadas para acolher os portadores de alta habilidade, a ioga os ajuda a trabalhar a paciência, a cooperação e o autoconhecimento.
Lucca, 6 anos, fala desde os 9 meses de idade e tem um pensamento lógico aguçado, mas não conseguia ficar quieto na escola, perdendo logo o interesse por qualquer tarefa que concluísse com facilidade. Ele se irritava com as crianças que não acompanhavam seu raciocínio e costumava impor sua vontade aos demais do grupo. Diagnosticado como portador de alta habilidade pela Apahsd (Associação Paulista para Altas Habilidades/ Superdotação), lá mesmo começou a fazer ioga.
Gabriela explica que, com a prática, os superdotados aprendem a reconhecer seu valor, saber de suas habilidades especiais e de suas dificuldades e também aproveitam o espaço da aula para falar de si.
Lucca frequenta as aulas há quase um ano. A mãe, Telma Sales, conta que o filho sempre lhe perguntava como poderia ficar mais calmo e ela sugeria que ele contasse devagar até dez. Poucas semanas depois que começou a fazer ioga, ele e Telma tiveram uma discussão e, imediatamente, Lucca se colocou na posição da árvore, respirou fundo e disse: “Mãe, eu não vou brigar com você”.
Em uma conversa com um colega portador de alta habilidade, Lucca comentava que estava meio cansado deste mundo, onde havia muito “blablablá”. Essa foi a deixa para a professora Gabriela trabalhar, durante a aula, o respeito às pessoas que têm opiniões diferentes e dizem coisas com as quais não concordamos.
O menino tem mostrado outra postura em sala. Mais calmo, ele ajuda os colegas com as tarefas que, para ele, são fáceis. A mãe comemora: “O pessoal da escola, a professora, a avó, todo mundo tem comentado que o Lucca está um doce, sempre feliz e que para ele não tem tempo ruim”.
Ana Maria Gonzalez, professora do espaço Prema Yoga, dá aula para crianças há 11 anos. Ela diz que trabalhar com crianças é rico e desafiador. “Se elas não conseguirem fazer nenhuma posição durante a aula, ficam frustradas e desistem. Se acharem tudo muito fácil, perdem logo o interesse”.
Ela diz aos professores que o importante é as crianças fazerem as posturas, ainda que o tempo de permanência seja bem menor que o de um adulto. Para as crianças calminhas ou para as bastante agitadas, os exercícios que trabalham com movimentos e mudanças de posição são os que mais chamam a atenção. Imitar os animais, contar histórias infantis e fazer brincadeiras em dupla aumenta a interação da turminha.
Ainda não é hora de inserir meditações, que são muito monótonas para quem tem tanta energia, e os relaxamentos não devem durar mais do que cinco minutos, ou as crianças se dispersam e começam a rir. Para a professora, a ioga é uma atividade livre de competição, em que não há espaço para críticas destrutivas, e traz benefícios físicos, psíquicos, energéticos e espirituais. “A ioga é a educação do coração”, conclui.
Fonte: Bons Fluidos - Thays Prado