No reino de Mathura igual à cauda de um pavão, onde o solo, em vez de flores, entreabre olhos de esmeralda e diamante, viviam, sob este olhar, duas princezinhas, a mãe morta desde cedo. Um rajá, seu pai, de barba grisalha, que tratou de esposar em segundas bodas uma jovem mulher muito bela e muito má. Detestando as enteadas, maltratando-as. O velho apaixonado e dominado foi deixando; cada dia trazia o seu tormento. Com a paciência esgotada, as meninas resolveram fugir; as duas cabeças rebeldes de quatorze e quinze anos amadureceram, sob os caracóis, um plano de fuga. Burlando a vigilância, transpuseram as portas do palácio, as da cidade e, numa noite de luar, as duas filhas do rei, dentro da floresta, andavam ao acaso enquanto o astro de raio sutil gelava a sua ingenuidade. Desconhecendo o correr aventuras como malabaristas, o pavor as domina, começam a se arrepender.
De súbito, um suntuoso palácio oferece seu umbral, elas o penetram, irrefletidamente: a habitação de um rachka malfazejo e de sua mulher que nada lhe ficava a dever. Os donos ausentes; a casa, vazia. As fugitivas morrendo de fome avistam arroz fervido numa travessa de prata, e comem-no com avidez. A refeição terminava, quando fez-se um grande alarido, do ogro e sua mulher retornando. As irmãs escapuliram para o telhado em forma de terraço; de onde, por uma abertura disposta na parede, elas viam, ouviam tudo lá dentro. O aspecto do rachka, pouco confortante: seus olhos flamejavam, uma barba arrepiada até os joelhos, a boca enorme pasmando sobre dentes afiados.
"Pelos mil olhos de Indra, rugiu ele ao entrar, alguém passou por aqui, Senhora, há um cheiro de carne fresca.
- Disparate, insinuou a ogra: quem ousaria arriscar-se no sombrio desta floresta? e somos temidos num raio de trinta léguas.
- Repito, Senhora, que sinto um cheiro que por si só já me enche de apetite.
- Seus lábios trazem o cheiro do sangue: não acaba o senhor de jantar mercadores encontrados na selva?
- Como queira. Estou morrendo de sede e vou ao poço tirar água; depois farei minha ronda, muito esperto quem me escapar.
Quem diria estarem as princesas tranqüilas, durante aquela conversa!
A caçula, de um sangue frio maravilhoso para sua idade, assim que o amável casal rumou para o poço, foi vindo de mansinho. O ogro, já pesado por uma digestão laboriosa, tratava de descer o balde, e sua companheira, inclinada para a frente, de dirigir as oscilações da corda. Um gesto ligeiro como o raio, da corajosa menina, agarra o calcanhar de cada um dos esposos, precipita-os: atravessam o feroz orifício, debatem-se na água, clamam com fúria. Tudo se cala, o ogro e sua mulher cessaram de viver: não juntemos oração fúnebre. A casa extravasava ouro e prata, só o que sobrara da pobre gente pelo dono devorada até os ossos. As crianças possuíam estas riquezas. Na esplêndida residência, um só inconveniente: estar, no mato, perdida. Duas jovens como Flor-de-Lótus e Gota-de-Orvalho ficavam bastante expostas num lugar assim. Uma, em casa, se ocupava dos afazeres domésticos, a outra saía a pastorear. Flor-de-Lótus, esta, ainda que mais moça, dava, antes de sair, à mais velha mil recomendações. Sobretudo não esquecer de trancar a fechadura, e "Se alguém bater, só lhe abra com o rosto polvilhado de carvão, a fim de que não intua sua beleza."
Felizmente ninguém se aventurava no lugar maldito. As mimosas pouco a pouco familiarizadas com sua nova situação, reconfortavam-se, juntas. Pelo ardor da caça levado, o filho do rei de Hastinapura , certa tarde, passa em frente ao palácio do falecido rachka. Um príncipe da cidade dos elefantes, vivos ou esculpidos em pórfiro, dos quais possui a força e a estabilidade, só dificilmente se assusta. Sua comitiva mantida à distância, caminha tranqüilo para os lados da morada, cujo silêncio o intriga. A porta, com as batidas de sua azagaia, permanece fechada e o real caçador, que não é paciente, resmunga e ameaça. Gota-de-Orvalho abriu com mão tímida, estendeu ao adolescente a palangana de água fresca que se oferece aos viajantes. Irreconhecível com seu rosto mascarado de pó preto e com trapos às pressas amassados por sobre a roupa, parecia a mais vulgar das servas; o esperto príncipe não deixou-se levar: farejou um mistério e, sem beber a água oferecida, bruscamente atira-a no semblante da princesa. A tez reaparece e sua coloração primeira. Se o procedimento era brusco, o Senhor se desculpa com a eloqüência possível a um belo rapaz subitamente atingido pelo amor. Seu coração, sua mão, e seus tesouros, tudo, ofereceu à bela; que se calava intimidada e pensando no retorno da irmã. Nem um instante sequer ele admitiu a idéia de que se pudesse recusar ser a nora de um rei. Este rubor e estas lágrimas, atribui-os a um púdico embaraço e sem mais, envolve a mimosa em seus braços robustos. Uma liteira aguardava na floresta: para Hastinapura! - O quê! nem sequer tempo para traçar umas linhas de despedida: um verdadeiro seqüestro. A Gota-de-Orvalho vem uma idéia brilhante, com vistas a deixar um fio à pobre retornante que vai encontrar tudo deserto. Desfia o seu colar, rasga uma echarpe de musseline e, em cada retalho envolve uma pérola, o precioso peso reterá o tecido na relva. A viagem de vários dias: ao longo da qual vai semeando as pérolas, atirando a última antes de entrar no palácio do seu futuro sogro. O portal de madeira e madrepérola fechado, ela pensa, no pátio, no abandono em que se encontra Flor-de-Lótus; e soluça por dentro em uníssono com os chafarizes.
O sol, raios atenuados, inclinava para o ocidente, lá adiante, quando a pastora reuniu seu rebanho; preocupada que, contrariando um querido hábito, ninguém tivesse vindo ao seu encontro: logo entra, chama, vas-culha em vão, e se cansa; despertado, só o eco, na casa solitária. A verdade transparece: roubaram-lhe a companheira. Melhor do que lamentar-se, segura irá dormir e deixa para o dia seguinte suas buscas. De pé, antes da aurora, uma primeira pérola avistada no gramado na extremidade do jardim, percebe a intenção da irmã. Segue em frente por uma estrada estendida ao sol e na poeira. Leva às vezes mais de hora até encontrar uma pérola. Os lavradores concedem-lhe por caridade uns punhados de arroz e dormir no estábulo; em sua precipitação descuidou de trazer o mínimo dinheiro: não é viagem de lazer. A beleza da errante princesa a destina a perigos, como ser levada por alguém terrível, senhor ou bandido, amante de manjares delicados. Uma vez, pernoitava no barranco, quando assustou-a um cadáver de velha ali jazendo, decerto morta de fome: esqueleto coberto de pele. Dominar sua repugnância custa-lhe mais do que cuidadosamente retirar a máscara ressecada e lavá-la no açude próximo: aplica-a aos próprios traços com a precisão com que se enluva uma mão e, cortando uma haste de bambu, nela apoiada, costas curvadas, cabeça balançante, fez sua entrada, pela manhã, nas ruas de Hastinapura. Doravante segura contra qualquer tentativa amorosa. "Velha feiosa!" exclamavam, desviando o olhar, os passantes. Flor-de-Lótus ria sob as rugas e tranqüilamente apanhava a última pérola junto ao palácio, compreendera que sua irmã não estava longe. Tentou até introduzir-se na morada real; os guardas brutalmente a enxotaram. "Tão suja canalha podia ter algo a tratar com os grandes da corte?" "De outra feita (para si mesma) o acaso me será mais propício".
Flor-de-Lótus arrendou-se, era preciso, enquanto isto, sobreviver, a um agricultor dos arredores da cidade. Trabalho pesado lhe cabendo, nada enjeitava, trabalhadeira como uma camponesa. As mulheres compadeciam-se e ajudavam-na, em razão de sua feiúra, benevolentemente. Durante semanas, a menina manteve sua máscara e seu segredo, heroísmo inverossímil; a vaidade, porém, tem de recobrar seus direitos: assim, de manhã, cedo escapulia do monte de capim, sua cama, no alpendre do sítio, para lavar-se no cristal do açude. Tirar depressa a pele emprestada, mergulhar a volúpia do rosto na água pura. Sua longa cabeleira lhe escorrendo assim nos flancos, penteá-la e, reatada, nela prender um lótus vermelho; pois tem um gosto imemorial por esta flor de sua infância, de nome igual ao seu. Livremente se deleita com o retorno da sua imagem, renova-a em sua memória e se abastece de si mesma, em segredo, por um dia. A pele velha, lavada, numa haste de caniço pendurada, escorreu, roçada de brisa. O dia brilha, é preciso voltar a ser feia, curvar-se, reintegrar o sítio e penar como besta de carga.
Ora, circunstância imprevista por Flor-de-Lótus, sua visita diária desnuda aos poucos das lindas flores o tanque, o rei tinha-lhes apego, não demoram em descobrir o furto: foi um caso propalado até o conselho dos ministros. Os políticos fundiam o espírito quanto ao meio de descobrir o ladrão. O segundo filho do rajá, valente rapaz, declarou que se encarregava sozinho de esclarecer a aventura. Galgaria uma árvore e, pelo verde abrigado, espreitaria o amante de cálices. Na mesma noite, o projeto foi posto em execução: o céu resplendia de astro, um vento mal enrugava o lago, agitando, sem soltar uma pétala, os lótus do rei.
Ao raiar do dia, apareceu a velha, pelo príncipe, nas ruas de Hastinapura notada, como prodígio de feiúra. "Diacho! tem graça, onde vai a vaidade aninhar-se? e precisa de flores esta cara de macaco... vai ter que se ver comigo, senhora ladra." Assombro! a máscara amarela e plissada acaba de cair, para revelar o mais doce infantil rosto que algum dia alumiou: um deslumbramento comoveu o príncipe. Quem? uma habitante da terra ou dos céus. Tão radiante aparição sequer já passara por sua idéia.
A inocente pensava estar só e calmamente entregava todo o corpo à curiosidade do jovem indiscreto. Saiu do banho, está sentada num degrau baixo da escada do açude, enquanto evapora cada gota, diamantes nela esparsos: o supremo véu flutua nos contornos, hesita e some qual nuvem ideal, deixando-a mais do que nua. Ora ergue os braços estirando-se como que para salientar a redondez de seu seio, ora brinca com o ondular da água sob seus pezinhos brancos, até parece, em sua delícia, afogar-se um casal de pombas. Então lentamente trança a cabeleira, negra como a abelha da Índia. No tanque agora não se abre flor alguma, com mão marota apanha uma das últimas ao seu alcance e, no ingênuo espelho, sorri e se admira. O filho do rajá nada perde destes graciosos folguedos: fremente, afasta, para ver melhor, um ramo de figueira que o oculta... Ah! a ladra pode colher impunemente todos os lótus que quiser: ele nem pensa em puni-la. De súbito, terá sido o kokila a lançar seu canto matinal ou um grito dado por Flor-de-Lótus, o sol resplandece; nunca a graciosa demorou-se tanto: num instante reajusta a máscara e foge. Em pé, junto à sua árvore, o príncipe apodera-se da flor amarfanhada que a moça jogou no chão: está perdidamente apaixonado e portanto disposto a todas as loucuras imagináveis. Voltando ao palácio, sobe amoroso ao terraço onde o rei reúne o seu conselho: "Senhor, ofega sem mais preâmbulos, estou enamorado da velha serva que reside às portas da cidade, com o arrendatário de Vossa Majestade e, com seu consentimento, pretendo desposá-la hoje mesmo."
Os ministros, malgrado o respeito devido aos soberanos, não conseguem conter um gesto de surpresa. "O quê! este rapaz, do qual todas seguem com olhar extasiado o andar, quando passa, soberbo, pelas ruas; este príncipe que possuiria as mais belas mulheres do mundo: decair em gostos tão depravados!" O rei, quanto a ele, fica atordoado com tão estranho pedido: "Está perdendo o juízo, meu filho! emite ele afinal. Desposar esta mendiga anciã, um amontoado de ossos abjetos, quando a terra abunda em princesas maravilhosas. O senhor ousaria, à nossa raça, de que os filhos receberam o esplendor por herança, infligir esta vergonha?" - "Muito bem, meu pai; o senhor me recusa, vou neste ato jogar-me nas águas do Ganga, que os deuses perdoem-no por minha morte!"
A rainha, avisada, intercede por um filho adorado: este capricho de espírito doente, uma mania passageira, há que satisfazê-los ainda que durem muito. Transcorre o dia nestas lutas domésticas; o menino mimado vence afinal. À luz das tochas, vão buscar a pretensa velha, que não ousa recusar tal honra, não entende nada, ela; noiva de um rei! Realmente, tanto enfeiar-se para alcançar este resultado! pelo menos não irá tirar a máscara, o príncipe a acharia demasiado bela para deixá-la correr por aí, proibiria a busca da irmã que, mais que nunca, deseja encontrar.
Dois ou três oficiais do palácio assistem à cerimônia, celebrada por um venerável brâmane, sacerdote titular da linhagem real. O príncipe está radiante; arrasta para a câmara nupcial sua hedionda esposa e com aquela voz meiga que os homens sabem usar oportunamente: "Minha bem-amada, suplica, enfim estamos sós; retire, eu lhe conjuro, esta triste pele que furta à minha boca seus traços divinos. - Estas palavras são para mim um enigma, friamente insiste a princesa que não sabe estar seu segredo desvendado. Bem queria ser mais digna do senhor; mas tal como me considera, tal qual realmente sou. - Basta com esta brincadeira que desperdiça um tempo precioso. Vaidosa, que se diverte com o meu carinho. Não sou paciente e costumam me ceder. O quê! não obedece, é pôr demais minha paciência à prova. Jogue fora a infâmia de um disfarce, ou mato-a neste instante. - Pois então mate-me, senhor; sinto muito, mas não poderia mudar de pele, mesmo que para agradá-lo."
Súplicas, ameaças, tudo fracassa diante de uma obstinada. O esposo toma o partido de deitar-se junto à mulher; evoca, no contato com aquela carne murcha, a lembrança do núbil frescor que olhou pela manhã; mas por mais viva que seja uma imaginação, às vezes ela não pode apagar a realidade.
Aquela primeira noite de núpcias ressentiu-se disto.
Antes do amanhecer a princesa, acreditando no sono do marido, deslizou da cama, para iniciar suas abluções no alabastro de um recanto próximo. O rapaz, que espreitava em vez de dormir, furtivamente seguiu sua mulher e, pegando a famosa pele que se estendia no chão, lançou-a num brasero, onde se consomem perfumes: ela encarquilhou-se com um ruído aos seus ouvidos encantado, e quase de beijos: "Arde, pele mentirosa, exalou: já me aborreceste bastante!" e voltando-se para Flor-de-Lótus, jovial brincou: "Pobrezinha, agora, condenada a ser a mais bela e a mais amada das mulheres. Não se envergonhe! surpreendi o segredo de sua beleza no açude lustral dos lótus, onde jurei jamais tomar a outra por esposa."
Um beijo mais bem sentido que o da noite concluiu o discurso do príncipe a Flor-de-Lótus que o permitiu sem rancor. O palácio ressoou, como que ao choque sagrado de um gongo, com a feliz notícia: a princesa devolvida à infância foi solenemente apresentada ao olhar de toda a família. Contar a alegria das duas irmãs ao se reconhecerem e jogarem uma nos braços da outra exigiria o acompanhamento de um muito afinado dentre os instrumentos musicais, encordoado com as próprias fibras de corações amorosos: com certeza, após tantas aventuras, mereciam a felicidade, que é muda.
Autor: STÉPHANE MALLARMÉ, poeta simbolista francês (1842-1898). Poeta capital da modernidade, publicou um único livro de versos, Poesias, além da prosa poética Igitur, da peça em versos Herodíades e de um volume com textos em prosa, Divagações. Seus poemas estão entre as obras líricas mais densas da literatura francesa, destacando-se composições como Brisa Marinha, Brinde e A Tarde de Verão de um Faunoe, que inspirou a peça sinfônica de Débussy. O poema Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso, com sua disposição espacial das linhas na página, em diferentes fontes e corpos de letra, é considerada obra precursora da poesia concreta. Buscando incorporar o acaso à construção da obra de arte, idealizou um livro inacabado, interativo e aleatório, que se aproxima do funcionamento dos atuais jogos eletrônicos.